sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

quem vê uma vez não quer voltar a adormecer

Procurava o último passo logo a seguir ao primeiro café da manhã. Uma imagem perfeita, reconhecida pelo azul mecânico de uns olhos que se podem apagar em segundos. Ansiava uma imagem significativa que descrevesse uma existência inteira, ou o belo controlado incapaz de fazer adivinhar o desmaio. Não queria o cinquenta amarelo galopado pelos porcos da cofidis, os mealheiros permanentes da dívida. Menos ainda o próprio reflexo apavorado num vidro qualquer.
Esperava a última vez de manhã à noite. Algures entre os solavancos inevitáveis de uma Lisboa apertada. Sem imberbes de mochila, sem o ruído anónimo dos taxistas por favor. Sem a companhia do amante em eterno horror.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

ao

Pegar na vontade e chegar à próxima estação. Sem gentileza. Não se corre mundo a olhar o vapor dos homens numa janela turva. A seguir é.
Chorar pouco a ficção do passado, usar uma vassoura e vestir a camisola das pinturas e não voltar a ouvir a melodia hesitante do cavaquinho, como quando foi a banda sonora de uma vida branda. A seguir é.
Ou aprender a tocar baixo, porque às vezes a seguir não é.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

o herói e o poltergeist

Fomos 16. Matei um por um até me restar um suspiro violento.
Escondo uma lâmina no tornozelo desde que parti. Já me serviu para amanhar peixe, para sangrar bons homens e desactivar o escorbuto nos mais fracos. Degolei, de uma só vez, 15 portugueses. Desossei o mais tenrinho para a ceia, quando céu e mar partilham o caos num prato sem horizonte. Minto à solidão. À minha volta giram borboletas de bem e de mal que despejam os mortos na água. Sem esforço, os corpos afundam-se à procura de um lugar descansado para habitar, tal como eu. Um batel sem costa onde
medito.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

always look on the bright side of death

E virou-se a primeira página do dia. A cuspo e a ferro. A primeira página de um caderno novo desimpedido de caracteres desenhados pela mão perfeita de um anjo.
Já não era preciso subir as escadas, nem procurar aqueles minutos pequenos na cozinha entre uma torrada e uma conversa circunstancial sobre o estado do mundo, sobre a poesia das araras secas que deslumbram talento aos mais antigos.
Já nada nos separava, nem nos separará, porque juntos acolhemos arrebatados a morte inteira de todos os sentidos num espaço de tempo universal que é absoluto para quem acredita na ciência. E ambos acreditamos, depende dos dias. Como Santo Agostinho.
Escolhemos, mais depressa ou mais devagar, agir contra o desespero. Ninguém ficou sentado à espera de um feitiço imutável. Nenhum de nós foi a serpente estúpida que não pára de seguir a flauta, muito menos a baleia que, entre tantas, marra no desperdício de uma costa amachucada.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

anestesia rima com hipocrisia

foda-se o édipo-rei e o ptolomeu
a jocasta, a antígona, o sófocles
e o orpheu

foda-se o alemão, o raffaello
a escola de atenas
fodam-se todos os mecenas

o futuro e marinetti;
o maserati, o materazzi
e a irmã dele
de alexandria à toscânia
milão
fodam-se todos todos
foda-se a inspiração
e a lipoaspiração e

fodam-se as rimas em "eu"
e fodam-se as rimas em "ão"

o sol, a lua, as rosas
meu senhor
são rosas
foda-se tudo até ao japão

ao longe arde o braço de uma criança em anestesia

sábado, 3 de janeiro de 2009

janeiro

Jurara não voltar ali, ao castelo lápide, incolor como o passado dos cães. Uma história sem a piedade das cores. Visitou aquele túmulo como quem abre uma gaveta atormentada e lá resolveu gastar umas horas inexplicáveis. Um culto como outro qualquer. A religião dos ateus, tão previsível, ou um regresso à necessidade. Queria a fúria e uma alma, vozes interiores contraditórias e boas recordações. Queria recriar um mundo quente e um cheiro que não desaparece. Metade de um tronco seria uma poltrona de conforto, os pássaros seriam os trovadores de uma manhã suave. Ele, o magnífico errante com os melhores pecados, seria anti-herói como as mulheres gostam. Despertaria a cura, a recuperação, o regresso apoteótico à normalidade dos homens, sem nunca perder a rebeldia que trazia nos dedos.